Verdi: "O hábito de escarrar e limpar o nariz em público faz parte da noção de limpeza do chinês. Não posso, porém, justificá-lo".
A China pós Antonioni

Maria Lúcia Verdi -

Antonioni filmou “Chung Kuo” (China, opaís do meio”) em 1972, quatro anos antes da morte de Mao e do início da abertura para o mundo.

Filmou esplendidamente, mas sempre sob o controle da censura - mas do filme falará meu colega João Lanari, colaborador deste site.  São comovedoras as imagens que registram aquele povo em suas ações cotidianas, em sua luta, conforme se pode constatar na mostra em cartaz no CCBB (dias 18 e 21/5) sobre o mestre italiano.

Aqui decidi publicar alguns dos meus pequenos textos sobre a China, publicados em “O caractere do sono – entre o Oriente e o Ocidente”, de 2005, também depoimento de um estrangeiro sobre o país.

A alteridade radical foi mais sentida por Antonioni e seu grupo, pois já conheci uma China capitalista. No entanto, os que forem assistir ao documentário poderão verificar que pouco mudaram certos aspectos da realidade chinesa e do que é ser estrangeiro entre eles.

O primeiro texto, “Hutongs”, retrata as ruas onde viviam em mínimas casinhas as famílias chinesas, algo semelhante as nossas favelas antes do horror se instalar.

Os hutongs hoje são raríssimos, conservados para os turistas terem uma visão nostálgica do que não se pode imaginar na China atual.

I - HUTONGS

Final de inverno, tudo é cinza. Ruas iguais e tristes, casas mínimas, estreitas, uma grudada à outra. Aqui, ali, à entrada da porta, o vermelho explode no cinza, o deus da riqueza sorri – Não vá tropeçar no beiral.

Carvão empilhado geometricamente, bicicletas, lixo, todos os dejetos humanos e flores secas largadas a um canto, um resto de cor.

Hutongs, não-espaços a se abrir vertiginosamente, a negação da autossuficiência, o cheiro do humano, a náusea incorporada e o permanente som de risadas. A concentração da vida e o sentido do mundo – provisório, aleatório, sem razão.

II - HÁBITOS

Atravesso a rua distraída e por pouco não sou atingida por um escarro. Sim, terei escutado a preparação que antecede o escarro, mas não a registrei como um sinal de alerta.

O hábito de escarrar o tempo todo, a naturalidade com que os sons do corpo são liberados, de acordo com os preceitos da medicina chinesa tradicional.

A sujeira que domina os lugares públicos, contrabalançada pela artificial assepsia dos locais onde os estrangeiros circulam.

O modo como se compraziam em limpar o nariz detidamente, em qualquer lugar – tudo deriva de uma outra noção de limpeza, de nojo, de saúde, de naturalidade. Não posso, porém, justificá-los.

Certa vez, durante o intervalo de um concerto, vi uma linda mocinha ocupar-se com carinho das cavidades do nariz. Enjoada, me perdia a olhá-la, absorta. Não sei aonde a cena me conduzia. O percurso do pensamento. Mozart e o absurdo.

III - BARATO

Não importa se te interessa ou não, deves comprar, é barato, pode comprar. Te custa comprar? Por que não compras? É aflitiva a impossibilidade de tão somente contemplar as coisas.

Tudo deve ser imediatamente adquirido, de preferência muitos exemplares do mesmo produto – grandes negócios por todos os lados.

Empacotadores frenéticos, mercadorias que seguem noite e dia para o mundo. Comprar: um ato redescoberto todos os dias pelos chineses, ritualmente, como uma antiga e renovada religião.

O ato engrandecedor de comprar, de sentir-se dono, senhor, possuir uma e outra e outra vez algo novo, algo muito novo, reiterando a certeza de que, sim, eu posso ter, posso consumir, como no Ocidente de minha imaginação, ou como um mandarim da velha China.

IV - NO PARQUE

Há uma última luz da tarde entre as árvores e a música é nostálgica, uma melodia ocidental sem pretensões. Os pares parecem felizes em suas roupas de festa.

Movem-se numa pista de cimento, no meio de um velho parque de diversões, como se dançassem num salão dourado, bem ao gosto dos chineses.

Dourado, a cor do ouro, do poder, do Imperador, da força. Pela expressão dos rostos, duplamente iluminados neste fim de tarde, devem ver muito dourado enquanto dançam.

Esmeram-se nos passos, na coreografia. Aqui, um certo tempo não passou e querem vivê-lo. Vestidos como nos anos cinquenta, sessenta, setenta, à maneira ocidental, descontam os anos duros, os sacrifícios, os uniformes, e se entregam à música.

Estranha recuperação de um tempo perdido. Um tempo que eles não conheceram,não assim, livres para dançar qualquer música, vestir qualquer roupa – isso estava realmente do outro lado do mundo, na época em que essa música era um hit.

Agora podem parecer burgueses, alegres. Vejo-os, no seu ocidentalismo intensamente chinês, e sinto uma mal disfarçada emoção.

V - LÓTUS OUTRO

Meu olhar recorta, fixa, classifica, tenta decifrar, seleciona, costura, compara, aproxima, afasta, relaciona.

É com ele que posso contar nesses labirintos feitos de traços, entre cantos mudos de sereias amendoadas. O olhar, a intuição, a percepção, a experiência, as leituras – precários instrumentos de uma taxinomia de sobrevivência.  

Intuo a dimensão do que nunca virei a saber, creio ter consciência do que permanecerá sem decifrar, apenas entrevisto num sistema de similitudes, de simulacros, de correspondências apreensíveis.

Quase intolerável o conhecimento do limite. Não me iludirei: essa língua é interminável, memória de milhares de tons, milhares de desenhos traçando a face do universo – nela navego, adormecida no amplo mar de seus sons.

A fantasia de compreender o sentido do que vejo, do que vi, verei, aqui, lá, antes, depois, ontem hoje. Não poderei realizar a transmutação, não existe alquimia que me faça renascer nesta língua, flore deste pântano, deste lago, lótus outro.

Não há magia que permita renascer, reconstruir o que foi, o que constitui, me dá nome, delineia, mesmo que o tempo não fosse este encarar-se permanente, essa angústia de finitude.

Repito para meus olhos, meus ouvidos, minha boca, minhas mãos – as horas existem para que eu aprenda um pouco mais, entenda um pouco mais a transformação.

As horas existem para que o significante venha a mim, espírito alado, o significado multiplicado, fluido.

Caligrafias, pinturas, os sons dos cantos apenas como som, o bronze, a cerâmica, a porcelana, a pintura, a poesia, a música, a escultura, os jades, as concretudes possíveis, salvadoras – a China na minha mão.