Cenas como essa se repetem em todo o Brasil
Até o Fora Temer ganha versão golpista

Romário Schettino e Sandra Crespo -

O que se diz na imprensa "especializada" é que Dilma Rousseff foi longe demais nas desonerações fiscais e que isso só favoreceu os ricos. Que os bancos nunca ganharam tanto dinheiro como nos governos petistas. Que Michel Temer tem herança maldita, e tenta fazer cumprir um calendário traçado pela própria presidenta deposta.

Os jornalistas também não se cansam de mandar recados para Temer ameaçando tirar-lhe o trono, caso ele não faça o que tem que ser feito imediatamente: arrochar mais ainda as contas públicas e privatizar o máximo, entregando a preço de banana patrimônio e tecnologia duramente conquistados pelos brasileiros. E, claro, reformar a Previdência de maneira a penalizar os mais fracos – deixando o resto por conta do mercado.

Quando as vaias e gritos de Fora Temer ensurdecem o presidento, acodem logo alguns “analistas”, que são empregados dos veículos da poderosa imprensa brasileira. Eles dizem, veja só, que os protestos não são contra Temer e os apoiadores do golpe parlamentar, e sim dirigidos às políticas econômicas adotadas por Dilma Rousseff.

Há nisso uma baita desonestidade intelectual. Citando um blogueiro rococó, até as gramíneas da Esplanada dos Ministérios sabem que o boicote ao governo Dilma começou a ser orquestrado pelo PSDB no dia em que Aécio Neves foi derrotado por Dilma, em outubro de 2014!

Nessa empreitada, o PSDB teve o apoio de muitos bandidões diplomados do PMDB e de outros partidos que integravam a base da presidenta. Por último, mas não menos importante, essa turma também teve, de bandeja, uma interpretação constitucional e legal nada ortodoxa e muito amigável por parte de membros do Judiciário e do Ministério Público. Acrescente-se ai o apoio da chamada grande imprensa.

Agora, Temer, após consumado o golpe parlamentar, despeja no Congresso, em doses muito mais amargas, parte da receita equivocada tentada por Dilma no início do segundo governo.

E, canalhice das canalhices, o usurpador, sem um voto sequer nas urnas, tenta nos enfiar a todos os brasileiros, goela abaixo, todo o programa do Aécio derrotado em 2014.

Um saco de maldades que Dilma e Lula jamais fariam: destruir a CLT para retirar direitos conquistados pelos trabalhadores há mais de setenta anos; desmontar o SUS, em vez de fortalecê-lo; e em conluio com setores obscurantistas do Judiciário e do Ministério Público, manter a salvo de novas delações e investigações seus parceiros políticos – alguns ministros poderosos.

Enquanto o pau come no lombo de Lula e outros inimigos dessa gente que tomou o poder de assalto.

Temer está entregando o pré-sal e a Petrobras para as multinacionais. Parece uma frase de efeito, porém é uma abstração para o cidadão comum. Por quê? Porque as tevês e os jornais, rádios e noticiosos mais lidos na internet ignoram o assunto solenemente! Não fazem uma matéria de verdade sobre o que está em jogo. O jogo sujo.

Interessante que, no dia seguinte à deposição de Dilma pelo Senado, todos os analistas econômicos e âncoras-que-se-acham da "grande" mídia repetiram umas cem vezes o mantra: se não fizerem a reforma, a previdência quebra e, ai sim, adeus aposentadoria!!! (zoom no olhar penetrante).

As políticas sociais de Lula e Dilma estão sendo, uma a uma, derrubadas pelo dominó sinistro de Temer. Será que, quando a maioria das vítimas acordar, será tarde demais? Só as ruas poderão dizer.

Por uma questão de honestidade intelectual, lembramos que a CUT e o PT jogaram duro com Dilma e contra as medidas amargas do ajuste fiscal.

Pode-se dizer que Lula e Dilma também eram neoliberais adaptados, pois o sistema internacional vigente exige coisas que nem o diabo imagina. E ambos falharam ao não bancar a reforma política e a regulamentação da Constituição quanto à exigência de cumprimento da função social dos meios de comunicação.

Mas é incontestável, em contrapartida, que Lula e Dilma tinham como meta principal a inclusão social, a distribuição mais justa da renda e o combate à miséria. Sem falar na ampliação estratosférica do acesso ao ensino superior e técnico e na valorização da carreira acadêmica.

Enfim, uma pequena redistribuição da riqueza estava a caminho. Faltava, claro, muita coisa ainda, como taxar as grandes fortunas, ampliar a reforma agrária, recuperar o parque industrial e tecnológico e mudar a tabela do Imposto de Renda retido na fonte etc etc.

Mas ignorar, omitir, esquecer o papel devastador da gangue de Eduardo Cunha é um grave desvio ético de muitos jornalistas considerados experts em política e economia.

Pois, ao invés de discutir, votar e aprovar o ajuste, o que fazia Cunha? Aprovava pautas-bomba, aumentando ainda mais os gastos do governo.

Esses predadores levaram ao plenário projetos de quinta categoria, ultraconservadores, até criminosos contra minorias. Esses parlamentares articularam com Temer e PSDB por debaixo dos panos a deposição da presidenta constitucional.

Então, desenhemos, para ficar claro. A presidenta Dilma não tinha base parlamentar. Por quê? Porque é difícil governar sob chantagem diuturna de falsos e poderosíssimos aliados, que apagavam o fogo com gasolina.

Na Câmara não passava nada. Aliás, uma proposta passava sim, e passava voando: o impeachment de Dilma, que foi sumariamente votado em exatos 30 dias na Câmara – de 17 de março, quando foi instalada a comissão, a 17 de abril, quando o mundo pôde ver cenas patéticas do legislativo profundo, ao vivo e em cores.

Enquanto isso, as comissões permanentes da Câmara dos Deputados, onde tramita a maioria dos projetos de lei, só foram instaladas este ano em maio! Nunca antes da história democrática deste país tal omissão legislativa foi registrada.

Enquanto isso, também, arrasta-se o processo de cassação de Eduardo Cunha – que começou a tramitar há mais de dez meses.

A economia de um país socialmente injusto como o Brasil exige uma imprensa mais comprometida com verdades inteiras, com a defesa do respeito ao voto popular e menos submissa a interesses internacionais. Um pouquinho só de nacionalismo já estaria de bom tamanho.

Defender privatização, desregulamentação das leis trabalhistas e a acumulação de riquezas por meio da espoliação da mão-de-obra alheia é desumano e não merece sequer o respeito de quem lutou e luta por um Estado mais justo.

E dizer que a vaia ao Temer era endereçada a Dilma é... o que mesmo? Uma piada? Um insulto à inteligência do freguês? Ou simples puxa-saquismo, sendo todo dia mais realista do que o rei?