Digitada e lançada ao espaço virtual, a palavra está solta e indomada, para o que der e vier.
Tagarelice virtual

Zuleica Porto -

"Hoje são muitas as vias que carregam as nossas palavras: facebook, twitter, instagram, sei lá quantas existem, e agora reina, soberano, o WhatsApp".

Quem vive da escrita sabe o quanto as palavras podem ser perigosas, escorregadias e imprecisas. Tanto assim que dois de nossos maiores poetas, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Mello Neto, expressaram em magistrais poemas o trabalho que dá lidar com a palavra.

O mineiro de Itabira, logo nos primeiros versos do poema “O lutador”, admite que “lutar com palavras / é a luta mais vã. Entanto lutamos / mal rompe a manhã”.

Sem carne nem sangue, prossegue o poeta, elas deslizam, “deixam-se enlaçar / tontas à carícia / e súbito fogem”. E nesse “corpo a corpo” com o “fluido inimigo” segue o artesão em sua peleja e o “inútil duelo / jamais se resolve”.

O pernambucano compara o ofício de escrever com o de “Catar feijão”, pois assim como “jogam-se os grãos / na água do alguidar”, as palavras são jogadas na folha de papel. Escritor e catador de feijão devem então “jogar fora o que boiar”, em ambos os casos “aquilo que sobra”.

O risco, alerta o poeta, é deixar passar “um grão qualquer / pedra ou indigesto”, capaz de “quebrar dente” e obstruir a leitura, que deve ser “fluviante, flutual”.

É preciso, enfim, muita luta e trabalho para que não sobre grão duro, de quebrar o dente, ou, já que além de concretas palavras são também escorregadias, escape algum indesejado duplo sentido.

Tanto cuidado, tanto trabalho desses mestres da palavra escrita bem valeriam de alerta para o nosso cotidiano. Pois nunca escrevemos tanto, o tempo todo.

Mas o suporte quase nunca é o papel, que mantém a palavra presa sob o nosso domínio para a necessária releitura, correção, reflexão e nova redação. Nem sequer digita-se mais no antigo teclado físico, para muita gente o computador pessoal já virou peça de museu, os textos que poderiam ser armazenados nos arquivos para posterior avaliação já são digitados diretamente, na telinha dos telefones ditos “inteligentes”.

Ao impulso do primeiro pensamento, na vaga da primeira emoção, soltamos o verbo. E o verbo, uma vez libertado, ganha o mundo, com suas ambiguidades e suas durezas. Hoje são muitas as vias que carregam as nossas palavras: facebook, twitter, instagram, sei lá quantas existem, e agora reina, soberano, o WhatsApp.

Se a tela é fluida, o acesso é instantâneo, a transmissão imediata, o dedo diretamente na tela, digital impressa nesse vidro impressionante do aparelhinho que está a ponto de dominar nossas vidas.

Nesses tempos que vivemos, uma ligação telefônica vale quase tanto quanto uma visita pessoal, com café e bolinhos tarde afora, ou vinhos e queijos noite adentro.

Quando o telefone é fixo, e nosso ouvido não fica em brasa com essas misteriosas ondas radiativas, podemos nos dar ao luxo de longas conversas, que atravessam cidades e oceanos e trazem o timbre, o calor, o riso, a emoção da voz humana.

A conversa pessoal, esta que estamos abandonando numa velocidade assustadora, traz em si “a presença física simultânea daquele que fala e daquele que escuta, o que implica uma ligação concreta, uma imediaticidade, uma troca corporal de olhares e gestos”, observa o estudioso da oralidade Paul Zumthor.

Se numa conversa ao telefone não temos olhares e gestos, ainda temos a “voz como voz”, como considera este pensador, na qual estão presentes “as pulsões psíquicas, energias fisiológicas, modulações da existência pessoal”.

Sabemos pelo timbre, pela entonação, pelo ritmo da fala, se a pessoa que nos fala está triste, alegre, calma ou ansiosa.

Carinhas tristes, alegres, raivosas, mandando beijos, são pobres ícones, facilmente mentirosos. Sem um pingo de tristeza, posso mandar para o mundo uma carinha em lágrimas.

Ou, em lágrimas, mandar uma carinha sorridente. Quem vai saber o que verdadeiramente sinto?

Não há como negar a utilidade dos meios virtuais para a comunicação imediata de fatos como data e hora de uma viagem, ou de fotos de pessoas queridas e distantes.

Ou para a divulgação de informações, textos literários, jornalísticos, enfim, o que consideramos importante para o interesse geral.

Mas penso que há que ter cuidado quando espalhamos emoções, opiniões, ou o que seja mais íntimo e pessoal num grupo que, nem preciso dizer, é heterogêneo.

Como saber se a palavra que escolho, aparentemente inocente, vai bater feito pedra dura na sensibilidade de outrem? Se estou diante da pessoa, posso avaliar o resultado do que disse, suavizar o eventual peso da palavra com um sorriso, um toque, um olhar.

Se estamos conversando por telefone, avalio o efeito do que disse no momento mesmo da fala, posso me corrigir, me desculpar, se for o caso.

Digitada e lançada ao espaço virtual, a palavra está solta e indomada, para o que der e vier.

Da mesma forma, se lanço minhas mais puras emoções, mais genuíno desabafo, para uma multidão de “amigos”, dos quais apenas uma minoria conheço pessoalmente, corro o risco de receber de volta a pedra da palavra dura ou a indiferença do silêncio.

Não por maldade, mas pela pressa que domina a maioria das leituras e a quantidade quase infinita de informações que são jogadas no universo virtual. No entanto, perigosamente, jogamos a concretude das palavras escritas no imediato presente.

Se os poetas sofrem, suam, trabalham duro em busca da palavra certa, e mesmo assim confessam seu fracasso em dizer exatamente o que queriam, como podemos nós, pobres amadores do ofício, querer sucesso nessa louca algaravia?

Confesso que, a cada dia que passa, sinto mais saudades da voz humana. E
para a insuperável presença física, para as longas conversas, nada como uma cadeira de balanço e todo o tempo do mundo.

E confesso também que este texto passou quatro dias sendo escrito, lido, reescrito, relido, até que me arriscasse a torná-lo público.

Oxalá não tenha escapado pedra dura entre os grãos das palavras.