Liberdade ainda que tardia

Alexandre Ribondi -
 
A homossexualidade é reconhecida como parte da história do Brasil. No capítulo apresentado no dia 12 de junho, da telenovela Liberdade, Liberdade, escrita por Mário Teixeira para a TV Globo, as personagens André (Caio Blat) e o capitão Tolentino (o ator português Ricardo Pereira) caem um nos braços do outro e, juntos, caem na cama, apesar de saberem que, pelas chamas ardentes que provocam, podem ser levados à fogueira da Inquisição.
 
Era o ano de 1808, a corte de D. João VI estava instalada no Brasil e os intestinos do País se agitavam pela independência, que viria 14 anos depois.
 
E qual a importância da cena? Para a TV Globo deve ter sido muito grande, porque, com certeza, a audiência alcançou pontos necessários à restauração da sua imagem, num momento em que, também, as tripas do Brasil se reviram no cenário político - e onde se revela que a própria emissora é cúmplice da atual crise nacional.
 
Para a discussão da homossexualidade, a importância é, com certeza, imensa. Afinal, os homossexuais, historicamente acostumados a viver escondidos, querem, cada vez mais, se ver representados na arte (assim como os negros, assim como as mulheres) - e cada exposição equivale a uma martelada forte na dura barra de ferro do preconceito e da moral.
 
E foi uma cena de sexo, que marcou o capítulo da terça-feira à noite. Eram corpos masculinos nus. Lá estavam as nádegas de Ricardo Pereira e o peito e as virilhas de Caio Blat. Mas lá estava também o afeto e o amor que as personagem sentiam. Se tudo isso é de relevância, há outros detalhes que não podem passar esquecidos.
 
Nas últimas décadas do século XX. foi forjado, pelos homossexuais, um culto acentuado à masculinidade. Para a grande maioria dos gays, o erotismo é provocado por figuras másculas e a dignidade só existe se os amantes forem visivelmente viris.
 
Nessa construção da imagem ideal, os homossexuais, quase de mãos dadas com os heterossexuais, vêem a bicha afeminada e os seus trejeitos como uma manifestação ridícula e empobrecida do homem.
 
Claio Blat, no entanto, desmunheca. Usa leques, revira os olhos, suspira. E é irmão adotivo da filha de Tiradentes, o grande herói nacional. Na cena da cama, ficam evidentes os traços das duas personagens. É quando começa o balé dos gêneros, apesar de haver, ali, aparentemente um só gênero.
 
Primeiro, o capitão Tolentino avança e beija André que, assustado, se afasta. Em seguida, André tira a roupa, peça por peça. O ponto máximo de toda a cena surge quando Tolentino passa os olhos de cima abaixo pelo corpo do outro homem.
 
Ele olha para a genitália de André. Com isso, leva o público a ter certeza que se trata do pênis do homem amado o que ele vê e deseja.  O militar também tira a roupa e André, num gesto delicado, leva a mão ao próprio peito, toca um dos mamilos, enquanto espera com ansiedade.
André acaricia o corpo do capitão, apalpa os músculos, experimenta a carne firme. E vira o corpo, para que as suas costas toquem o peito do amante e para que a sua bunda reconheça o pau - e para que o público tenha certeza do que ele deseja: ser penetrado.
 
As pequenas cenas seguintes mostram carícias de Tolentino na espinha dorsal de André e a boca de André, que desce pelo peito de Tolentino.
 
A bicha afeminada ganha, assim, contornos nobres. Os seus sentimentos estão sendo expostos. Ela é capaz de amar, de delirar, de se entregar ao homem que escolheu e de ser feliz.
 
Ela, a bicha, com seus gestos, olhares e suspiros, não se apresenta com a masculinidade necessária à aceitação. Ela vai além, ela desmoraliza a rigidez dos gêneros, ela salta sobre a imaginária linha que divide o feminino e o masculino.
 
Os homossexuais, que vêem com desrespeito a bicha pintosa, que aprendam a respeitar. Porque André e Tolentino, amantes do século XIX, podem nos ensinar uma lição: não se trata apenas de Tiradentes, que correu riscos pelo Brasil. Na verdade, há uma liberdade imensa e feroz em ser quem você realmente é.