José Carlos Peliano
Good lock ou good luck moçada!

José Carlos Peliano (*) -

Nos idos dos anos noventa na enxurrada das águas de libertação da ditadura que tomou conta dos brasileiros, os caminhos iam e vinham país adentro e afora. Muitos de nós fomos respirar ares novos na velha Europa de onde vieram a maioria de nossos ancestrais.

Vinhos nacionais ainda permanecem navegando em nossas veias vindos de Portugal, França. Espanha e Itália. Os olhos guardam imagens inabaladas de recantos de Londres, Berlim, Amsterdam e cidadezinhas do interior do continente. Até mesmo não sai da memória as estações de trens de onde entram e saem saudades bem aventuradas.

O deslumbramento de pisar pela primeira ou pela enésima vez no solo europeu sempre vinha e vem conosco toda vez que saíamos e saímos ainda hoje de nosso país. Ainda mais agora quando ele está sendo despedaçado política, econômica, social e moralmente por esse governo ilegítimo, breve e corrupto.

Bate no peito a vontade de ir embora de vez desse caos institucional, de um futuro embaçado por dúvidas, aborrecimentos e perdas, mas ressoa também no coração o desejo de ficar para combater os desvarios fascistas e torcer pela volta da democracia sã, honesta, franca, geral e indiferenciada.

Mesmo estando a Europa igualmente em longo período de estagnação e arrasto econômico, desequilíbrios políticos e sociais. Segura-a a tradição de uma cultura forte, ainda amalgamada em valores universais de fraternidade, civilidade, cidadania e liberdade, apesar de sinais de retrocesso.

Tradição que falta ao nosso país aculturado por vários povos invasores que nos colonizaram e usurparam de nossas riquezas em inúmeros períodos. E ainda estão hoje à espreita.

E foi nesse embalo paradisíaco de chegar ao continente europeu e usufruir em alguns dias de férias de sua hospitalidade e diversidade que um casal amigo, Márcia e Sandro, no começo dos anos noventa, chegou por lá de mochilas e dinheiro contado. Contado e bem contado, mas descontado do câmbio nosso desvalorizado de cada dia.

Consta que, ao chegar em Amsterdam, foi o casal procurar por uma pousada onde passar os dias. Da estação de trem partiu para o endereço anotado em noite repleta de holandeses e europeus pelas ruas, infiltradas de brasileiros também. Chegaram Márcia e Sandro, se instalaram, reconheceram o terreno e saíram para comer alguma coisa.

A recepcionista da pousada indicou-lhes um bar por perto, bem frequentado, com variedades de opções, local sempre por ela indicado.

Foi então o casal ao bar duas ruas à frente. Noite limpa, estrelada, lua meio vazia, meio cheia, estômagos vazios, fome cheia.

Copos meio vazios, meio cheios, tristezas vazias, alegrias cheias, sentaram-se e pediram um bolinhos com boa aparência e substância, pois preparados com cannabis.

Dois cigarrinhos bem enrolados da mesma substância chegaram ao casal como cortesia aos estrangeiros, brasileiros, ofertados pela simpática servente do bar.

Bolinho para cá, bolinho para lá, goles de cerveja para cá, goles para lá, o casal se divertia em meio aos demais frequentadores do bar ao som de músicas movimentadas da época.

Brindavam-se mutuamente. Muita fumaça de cigarro rodopiava pelo ar e piava em rodo pelos risos e vozes indo e vindo pelo ambiente. Mais um brinde, saúde, proost!

Lá pelas tantas, após tantos bolinhos, fumaças, sons, beijinhos, brindes e tragadas, sorrisos, idas e vindas ao banheiro, o casal resolve retornar à pousada.

Já passava do início da madrugada e chegava ao fim à noitada. Márcia e Sandro, alegres, e bote alegria nisso, felizes, enevoados em cores de imagens e pensamentos, levantam-se e as pessoas sentadas ao redor os saúdam de vez, despedem e os felicitam.

Sandro não se contém e retribui às saudações: Good lock, moçada! Todos os que os saudaram caíram em gargalhadas. Márcia lembra a Sandro que não era lock, mas sim luck.

Uma simples questão de abertura labial e posicionamento da boca para que o som saísse como convinha. Sandro cai então em gargalhada e retribui às demais que pipocaram pelo ambiente.

Pronunciou certo por fim. Good luck moçada! Mas luck muita, muita! Luck para everybody! Aí todos levantaram suas enormes tulipas e brindaram ao casal brasileiro que fecha (lock) sua noite desejando sorte (luck) à moçada holandesa.

Saíram festejados, às risadas, alguns tulipeiros foram até à porta e continuaram às saudações. Caminharam até à pousada protegidos pelos braços e abraços coloridos e modorrentos da cannabis.

Como diriam nossos antepassados, não se faz tulipeiros nem conterrâneos, nem confraternização espontânea e genuína como antigamente.

O tempo dá voltas e, às vezes, essas voltas se revoltam com ideias, soluções e comportamentos revoltantes. Como o espírito preconceituoso xenófobo e a postura fascista. Xenofobia lá e fascismo aqui.

A entropia piora com Trump gerando a “entrumpia”, que somada à xenofobia sem bandeiras da Europa diminui a energia saudável do mundo, ameaça sonhos de integração, reduz a esperança, diminui a força de reação, trazendo a inércia.

Essa inércia descabida que toma conta do país nas mãos de um governo indevido, ilegítimo, incapaz, infrutífero. Deixa a fera solta dos radicais imbecis, oportunistas, sem direção definida, apopléticos.

Mais arruaceiros que manifestantes, bradando coisa nenhuma, coisa com coisa, mas perturbando a ordem democrática, infestando de ira sem limites o tecido humano, social e político brasileiro.

Uma salva de palmas para Márcia, Sandro e os tulipeiros de feliz memória, que seu exemplo, como de tantos outros semelhantes, pipoque país afora e reconforte desejos de mudanças desse estado apático e derrubado de coisas no país.

Proost casal! Proost tulipeiros! Abaixo os golpistas daqui e os xenófobos de lá! Que o sonho não morra!
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(*) José Carlos Peliano é colaborador do site www.brasiliarios.com